Tempo (in)evitável


(imagem do Google)

Escondi-me atrás de uma porta
à espera que o tempo passasse
e não me visse. Impiedoso
o tempo passou e notou
a minha presença. Implacável
não descansou enquanto não me encontrou.
Fez de mim “gato e sapato”,
exigiu-me o “preço da vida”.

Como sou teimosa fiz “finca-pé”,
não lhe dei o que me exigia
assim “de mão beijada”.
Resolvi trapacear o tempo,
fiz pirraça, insultei-o,
expulsei-o da minha vida.
E vivi, plenamente, vivi!

Dancei ao som do vento,
fiz da vida um festim,
bebi o néctar divino
esparzido por Zeus.
Rodopiei, “pintei a manta”,
senti-me uma bela mulher.
Vesti-me, pintei-me a rigor,
ri do bom e do menos bom,
mas fui intensamente feliz.

Quando voltei, nunca pensei,
o tempo só me contemplava.
E eu, que o ignorara até ali,
só então me apercebi como me olhava.
Era chegado o tempo de pagar a factura,
nada é dado “de mão beijada”
e a contrapartida do tempo
era tudo menos desejada.

Ali me fez despojar-me de mim,
perder a graciosidade da dança,
sentir o fel do néctar de Zeus,
cair em meio de um rodopio.
E a roupa com que antes brilhava,
estava agora desactualizada.
A tinta com que me pintara
pela face escorrera e se espalhara
em sulcos cravejados na pele.

Afinal, o tempo sempre ali estivera,
quem sabe…à minha espera…
Só eu saí de trás da porta,
mas esta não desapareceu,
esperou por mim, paciente.
E, sentado numa cadeira,
o tempo continuou presente
como quem espera o rato
com a sua infalível ratoeira.
                               Célia Gil

4 Comentarios

  1. Lembrei-me de Francisco de Goya - sou apaixonada por sua pintura - Saturno Devorando um dos seus filhos (1820-3). O seu poema tem a mesma intensidade - mas traz em si a vida que o quadro de Goya deixa na escuridão das entranhas do deus. Você joga luz sobre as "tintas" que, sabemos que envelhecerão, porém, enquanto formosas, marcarão com sua beleza os quadros do mundo e a memória daqueles por elas enfeitiçados...

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  2. Obrigada pelas visitas e comentários!
    Fénix, tenho de lhe dizer que escreve muito bem!

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  3. Amei este poema!!!! Sinto-me fugindo do tempo o tempo inteiro, mas sempre, ao me refletir no espelho, lá estão as marcas que el foi deixando em mim e que eu ignorei.

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