Viagem



     O táxi vagabundeia rasgando serras, pinhais e mato. As curvas da estrada transpõem-me para um carrossel que não pára. Horas e horas intermináveis, que me dão a ideia de estar a percorrer vários países, todos iguais, todos monótonos. A paisagem não me desperta qualquer sentimento, porque eu não pertencia ali e sentia-me contrariada, a fugir cada vez mais de mim, do meu ser, da minha essência. O pensamento vogava triste em tudo o que deixara, a minha casa, os meus amigos, os cheiros das ruas, das frutas e das pessoas, o meu fiel e amigo Janota – um cão rafeiro que fazia parte da família – e, sobretudo, o meu pai, que não sabia se voltaria a ver, perdido nos tiros de uma guerra sem qualquer sentido na minha mente de cinco anos.
     O avião era, nessa altura, visto por todos como um passaporte para a salvação. A fuga, a vida, a escolha certa. Porém, para mim, era a fuga de mim, a fuga de tudo o que gostava, de tudo o que era. Do avião, resta-me a paisagem que observei aquando da partida, o descolar do meu território. Não sabia o que me esperava, para onde ia, quem encontraria… Mas a minha vida, tão simples até então, estava prestes a mudar.
     De volta ao táxi, recordo as vozes de tias mais velhas, mas nem sei ao certo o que diziam. Apesar de tudo, elas estavam felizes, algo que eu não conseguia compreender. Era o regresso à pátria, segundo diziam, com orgulho. A minha mãe era tomada por sentimentos opostos. Por um lado, o regresso às origens, a fuga à guerra e a protecção da cria. Por outro, invadia-lhe os olhos uma grande tristeza por ter deixado o meu pai, a sua cara-metade, numa guerra ingrata e tudo o que tinha construído até então, com esforço confiante.
A chegada a casa foi, por mim, encarada como o fim do suplício de uma viagem infindável. Mas foi efémera essa sensação de alívio.
     Depois de enfiar a chave na porta, quando esta se abriu com dificuldade, veio-me um cheiro a velho, a madeira apodrecida pelo tempo. Subimos as escadas com cuidado, até uma divisão onde foi preciso andar pé ante pé, dado que as tábuas rangiam, queixando-se dos anos ao abandono a que foram submetidas. Podíamos, na pior das hipóteses, desabar na sala, por sua vez na loja… Não queria olhar, fechava os olhos com toda a força das minhas mãos, observando, no entanto, por entre as frestas dos meus dedos magros. As paredes velhas, as teias de aranha, as tábuas cheias de humidade, o cheiro a velho, os ratos, eram agora a minha realidade, à qual só queria fugir. Não estava, de todo, habitável. E uma questão invadiu a minha mente, atormentando-me, fazendo-me encolher na minha insignificância. Rapidamente me sentei no vão de uma escada, e, abraçando as pernas, pressionando-as com força de encontro a mim, transportei-me em pensamentos à casa que não chegou a ser. Nos olhos lágrimas por transbordar, pois não queria desanimar ainda mais a minha mãe. Por dentro, a alma afogava-se nas lágrimas que não brotavam.
     Deixara uma casa nova, a cheirar a madeiras novas, com um lindo jardim no exterior. Não chegou, no entanto, a ser habitada. Nunca viria a ser a minha casa, já que tínhamos sido obrigados a partir antes de a chegarmos a habitar. E, agora, a nossa casa, o lar de que as tias falavam, era uma velha casa inabitável. Se já me sentia despojada da minha terra, do meu pai, do Janota, dos meus amigos, pior me senti ao perceber que não tinha onde ficar, a não ser aquela velha casa enegrecida pelo tempo, corroída pela humidade, em que tudo cheirava a mofo.
                                                                                                       Célia Gil

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